O mais recente livro de Javier Cercas, O Louco de Deus no Fim do Mundo, apresenta um dos projetos literários mais inesperados da sua carreira.

Conhecido pela escrita rigorosa e pela reflexão sobre a memória, a verdade e o papel do indivíduo na história, Cercas surpreende ao aceitar um convite inusitado: acompanhar o Papa Francisco numa viagem à Mongólia. O resultado é um livro que mistura crónica, ensaio, autobiografia e reflexão existencial, num exercício de autoconhecimento e confronto com o mistério da fé.
O ponto de partida é simultaneamente íntimo e universal. Cercas, um escritor assumidamente ateu, anticlerical e racionalista, decide perguntar ao Papa se a sua mãe, profundamente crente, reencontrará o pai depois da morte. Esta pergunta simples, quase infantil, serve de fio condutor para uma investigação sobre a crença, a dúvida e o sentido da existência. O autor transforma a viagem em missão pessoal e espiritual, levando a questão da mãe como símbolo de uma procura humana que ultrapassa o âmbito religioso.
A narrativa acompanha os bastidores da viagem papal à Mongólia, uma terra longínqua, quase mítica, que funciona como metáfora para o fim do mundo tanto geográfico como espiritual. Cercas observa o Papa com curiosidade e espanto, registando os gestos, as palavras e as reações do homem que representa uma das instituições mais antigas e poderosas do planeta. Ao mesmo tempo, observa-se a si próprio, questionando as fronteiras entre o escritor e o homem, entre o observador e o crente.
O livro é difícil de classificar. Pode ser lido como uma reportagem literária, um ensaio filosófico, uma confissão íntima ou até um romance de ideias. Cercas domina a arte de cruzar géneros e o resultado é um texto envolvente e provocador. A escrita, fluida e irónica, alterna momentos de humor com passagens de grande densidade emocional. Há um equilíbrio entre a lucidez racional e a fragilidade da fé, entre o ceticismo intelectual e a necessidade humana de acreditar em algo maior do que a própria razão.
Um dos aspetos mais fascinantes de O Louco de Deus no Fim do Mundo é o modo como o autor retrata o Papa Francisco. Cercas não o idealiza nem o transforma em figura mística. Vê-o como um homem com contradições, ciente das dificuldades do mundo e das limitações da Igreja. A sua atitude perante o Papa é de respeito, mas também de dúvida. Essa tensão dá força ao livro, pois reflete o conflito interior do próprio autor. O encontro entre o “louco de Deus” e o “louco sem Deus”, como Cercas se define, torna-se o centro simbólico da obra.
O texto não se limita a explorar a religião. É, acima de tudo, uma reflexão sobre o ser humano e sobre a procura de sentido num mundo cada vez mais fragmentado e descrente. A Mongólia surge como cenário de isolamento, mas também de descoberta. Longe da Europa e do ruído da modernidade, Cercas encontra um espaço de silêncio onde a dúvida pode coexistir com a esperança. A viagem transforma-se num espelho interior.
O autor faz do livro uma ponte entre mundos aparentemente opostos. Fala de espiritualidade sem ser religioso, de fé sem dogmas e de morte sem desespero. Consegue colocar lado a lado o ceticismo e a compaixão, o humor e a tragédia, a filosofia e a literatura. Essa fusão torna o texto universal e atual. Num tempo em que as sociedades se dividem entre o fanatismo e o desencanto, Cercas propõe um caminho intermédio, feito de perguntas e não de certezas.
Há também uma dimensão familiar que atravessa a obra. A mãe do autor, figura central da motivação do livro, representa a persistência da fé simples, aquela que não se explica nem se impõe, mas que resiste ao tempo. O gesto de Cercas em procurar uma resposta para ela é, em si mesmo, um ato de amor e de reconciliação com o passado. Essa ternura dá ao livro uma profundidade emocional que o distingue de outros trabalhos do autor.
O Louco de Deus no Fim do Mundo é um livro sobre a dúvida, mas também sobre a necessidade de acreditar. É um texto que pergunta mais do que responde, e talvez por isso seja tão poderoso. Cercas mostra que a literatura pode ser um território de encontro entre o racional e o espiritual, entre o que compreendemos e o que ultrapassa a nossa compreensão.
No fim, o leitor percebe que a viagem à Mongólia é apenas o cenário de uma viagem muito mais profunda: a viagem interior de um homem que, sem fé, procura compreender os que acreditam. Essa procura, mesmo sem certezas, é o que dá sentido à obra e à própria existência.
Com O Louco de Deus no Fim do Mundo, Javier Cercas reafirma-se como um dos grandes escritores europeus contemporâneos. O livro confirma a sua capacidade de unir o rigor narrativo à reflexão filosófica, transformando uma experiência pessoal numa interrogação universal sobre a vida, a morte e o mistério da fé.

















