Os KAKERLAKK são um dos projetos mais singulares a emergir do panorama musical açoriano nas últimas décadas. Criado por Carlos Matos em 2000 como um projeto a solo, o nome ganhou forma oficial em 2003, quando uma demo enviada à RDP-Açores levou à gravação de uma sessão ao vivo que marcou o primeiro momento público da banda. Entre longas pausas, regressos e renascimentos, KAKERLAKK evoluiu de uma aventura individual para um coletivo coeso, formado por músicos experientes como André Gouveia, Stepan Kobyakin, António Couto e João Bettencourt.

 

Depois do álbum de estreia “Overdue” (2023), que representou a concretização de um sonho há muito adiado, o grupo regressa agora com “The Sound of Grief”, um registo profundamente emocional que explora o luto, a identidade e a transformação. Gravado nos StepKeys Studio, o álbum reforça a maturidade artística da banda e aprofunda a sua assinatura sonora. Para compreender melhor este percurso, conversámos com o fundador e compositor Carlos Matos, que nos guiou pelos bastidores do processo criativo, das raízes do projeto ao futuro que se avizinha.

1. “The Sound of Grief” chega depois de um percurso marcado por pausas e regressos. Como descreveriam o processo emocional de criar este álbum?
Este álbum surge na sequência do plano pessoal que tinha para finalmente divulgar a minha música. Componho desde os 15 anos e comecei a gravar cada instrumento num deck de cassetes, inventando formas de sobrepor faixas de cassete para cassete. Mais tarde, passei a usar uma mesa de gravação de 8 pistas que os meus pais me ofereceram. Após as aulas, chegava a casa e aperfeiçoava ideias que tinha gravado, muitas vezes com amigos ou familiares que contribuíam com bateria, teclas ou violoncelo. Fui acumulando muitas gravações, embora com pouca qualidade, guardadas em cassetes e depois em CDs.

Por volta de 2000 comecei a compilar pequenos álbuns e a usar o nome Kakerlakk. O projeto teve início oficial em 2003, quando enviei um demo-CD para a RDP-Açores num concurso de novas bandas. Passei à fase seguinte e tive de reunir uma banda para tocar ao vivo. Depois dessa atuação, o projeto voltou a parar e só em 2011 tentei retomar, já com André Gouveia e António Couto. A morte súbita da minha mãe suspendeu novamente tudo.

Em finais de 2022 decidi que era altura de avançar definitivamente. O André recomendou-me o Stepan Kobyakin, que tinha acabado de construir o StepKeys Studio. Começámos a gravar em 2023 com a ideia de lançar singles mensais. Lançámos cinco e, rapidamente, percebemos que dali sairia um álbum, o “Overdue”, editado a 9 de dezembro de 2023.

“The Sound of Grief” começou a ser gravado imediatamente depois. Estávamos entusiasmados e havia muito material para trabalhar. O processo foi mais demorado, sem pressas, e quando reuni as letras percebi que tinham um fio condutor: o luto, nas suas várias formas. Depois de vários títulos provisórios, ficámos com “The Sound of Grief”, que agradou a todos.

2. O novo disco aprofunda temas como perda, identidade e transformação. De que forma estas experiências influenciaram a escrita das letras?
A maioria das letras já existia, exceto “In Memoriam”, escrita em 2024. Foram criadas quando tinha 16, 17 ou 18 anos. Algumas foram revistas, mas mantiveram a essência. São reflexos de uma fase da minha vida profundamente marcada por perdas constantes e muito impactantes. Essas experiências influenciaram enormemente a minha identidade. O processo transformativo é universal: tem a ver com o que fomos, o que somos e o que desejamos ser.

3. A produção de Stepan Kobyakin tem sido apontada como um fator essencial na sonoridade atual da banda. Como descrevem essa colaboração no estúdio?
O Stepan é um músico excecional, o único de nós com formação e que vive a música diariamente. Compreendeu desde o início o som que eu procurava. O André mostrou-lhe as minhas demos e ele sentiu que havia ali potencial. O facto de Kakerlakk ter sido o primeiro projeto a ser gravado oficialmente no StepKeys Studio e de ele ter aceitado integrar a banda foi motivo de orgulho. Sem a sua colaboração, não teríamos alcançado metade do que conseguimos, tanto na sonoridade como no audiovisual.

4. O single “Every Time I Die” definiu o tom do álbum. Porque escolheram esta faixa para apresentar o novo capítulo da banda?
A ideia inicial era lançar o álbum a 9 de dezembro de 2024, um ano após o primeiro. Como ainda estávamos a gravar, escolhemos entre os temas já prontos aquele que mais agradou a todos. Queríamos assinalar a data de alguma forma e, como não lançámos o álbum, lançámos o single.

5. O álbum conta com a participação especial de Zeca Medeiros na faixa-título. Como surgiu este convite?
O tema já estava gravado, mas sentia que faltava algo. Experimentei incluir uma parte em português, usando um poema meu que encaixava no contexto. Sempre que ouvi essa secção, imaginava a voz do Zeca a declamá-la. Conheço-o desde infância e ele sempre me incentivou a fazer algo com a minha música. Contactei-o e ele aceitou. O tema ganhou outra dimensão emocional e simbólica.

6. A formação atual resulta de reencontros e novas entradas. O que mudou na dinâmica da banda desde 2023?
Passámos de três elementos, no “Overdue”, para cinco. A entrada do António Couto e do João Bettencourt trouxe a assinatura artística de cada um, transformando naturalmente a sonoridade da banda no melhor sentido possível.

7. Sentem que este disco representa uma consolidação da identidade musical dos KAKERLAKK?
Sem dúvida. Cada elemento trouxe influências e formas de estar que fortaleceram a nossa identidade coletiva. O que começou como um projeto individual tornou-se um grupo unido, e isso reflete-se em tudo, especialmente no som. A consolidação será ainda maior quando começarmos a compor juntos.

8. O vosso percurso inclui momentos marcantes na televisão açoriana. Como contribuíram essas experiências para o vosso crescimento?
As participações no “Natal dos Hospitais” em 2023 e 2024 foram muito importantes para a visibilidade da banda. Este ano estivemos também no programa “Açores Hoje”, onde fomos entrevistados. Ser vistos é diferente de ser apenas ouvidos, e isso influencia a perceção do público e o nosso crescimento.

9. O processo de gravação nos StepKeys Studio trouxe novas possibilidades sonoras. Que elementos técnicos ou criativos foram determinantes?
O estúdio foi determinante pela qualidade técnica e pela abordagem criativa do Stepan. As guitarras, vozes e teclas ganharam espaço e profundidade. Trabalhámos sem pressa, o que permitiu rever detalhes e experimentar. O ambiente de confiança foi tão importante quanto os aspetos técnicos.

10. “The Sound of Grief” tem uma forte componente introspectiva. Como tem reagido o público a essa intensidade?
Era um risco expor-nos desta forma, mas a reação tem sido muito positiva. Notamos que muitos ouvintes regressam repetidamente aos temas mais emotivos, o que mostra identificação e ligação ao disco.

11. Que papel teve o passado do projeto na construção da vossa identidade?
Foi absolutamente determinante. Desde as gravações caseiras às experiências de 2003, tudo moldou a forma como componho e a autenticidade do projeto. As pausas e os regressos reforçaram essa identidade. Hoje carregamos o passado não como nostalgia, mas como base sólida.

12. Quais são os próximos passos dos KAKERLAKK?
Vamos lançar a edição física do álbum e preparar videoclipes. Quanto a concertos, queremos fazê-los com a devida preparação, alinhando temas dos dois álbuns. O processo criativo continua e, depois da promoção deste disco, começaremos a pensar em novo material.