Uma Nova Viagem Pela Música Portuguesa
Depois do sucesso de Fado Urbano, a banda desenhada que reinventou o fado para o século XXI, o musicaTotal.net regressa com uma segunda edição igualmente ousada e apaixonada pela música portuguesa.

Chama-se “Som Eléctrico”, e leva-nos de volta aos anos oitenta, a uma época em que guitarras distorcidas, sintetizadores, rádios pirata e cabelos desalinhados desenhavam a nova identidade sonora de Portugal.
A protagonista é Rita Fonseca, uma jovem guitarrista de Coimbra que foge de casa para Lisboa em busca de palco, liberdade e som. É nela que se reflete o espírito de uma geração que quis dançar depois do silêncio, criar depois da revolução, e transformar o país através da música.
O Contexto: Portugal em Alta Voltagem
O enredo de Som Eléctrico nasce no mesmo universo que Fado Urbano, mas avança no tempo e muda de frequência. Estamos em 1984: Portugal vive um momento de transição cultural intenso. As rádios livres florescem, os concertos multiplicam-se, os discos independentes começam a circular.
O rock português vive o seu auge com bandas como Xutos & Pontapés, UHF, Heróis do Mar, Rádio Macau, GNR, Táxi e Sétima Legião. A pop nacional começa a ganhar estética própria e o público jovem descobre a energia do som amplificado, a eletricidade do palco e o poder da palavra cantada.
É neste cenário que Rita Fonseca aparece — uma personagem fictícia que incorpora a energia e a urgência desse tempo. Uma mulher num mundo ainda dominado por homens, uma artista que desafia as regras do mercado e do costume.
Rita Fonseca: A Voz Elétrica dos Oitenta
Rita tem 21 anos e uma guitarra vermelha herdada do irmão mais velho, que tocava num grupo de garagem. Cresceu a ouvir José Afonso e Nina Hagen, Aprendeu acordes em revistas estrangeiras e gravava cassetes com o rádio encostado ao ouvido.
Na primeira parte da banda desenhada, vemo-la a sair de Coimbra num comboio noturno, com uma mochila, a guitarra e um caderno de letras. Chega a Lisboa e instala-se num quarto minúsculo em Alcântara, onde passa as noites a compor.
“Quero um som que faça tremer as paredes”, diz ela na primeira página.
Rita não procura o fado, nem a tradição — procura o ruído da liberdade. E é isso que o Som Eléctrico capta com uma energia quase cinematográfica: o momento em que Portugal se ligou à corrente global da música, sem perder o sotaque.
Da Rua ao Palco: O Percurso de Uma Rebelde
O guião, assinado por Mário Duarte (argumentista conhecido pela série anterior), mistura ficção e memória coletiva. Rita conhece um grupo de músicos marginais, ensaia num armazém abandonado, e começa a tocar em bares clandestinos.
Os diálogos são afiados, cheios de humor e gíria dos anos 80:
“Tens medo de quê? Do feedback ou da censura?” — pergunta-lhe um colega de banda.
“Do silêncio.” — responde ela.
Ao longo da história, Rita e a sua banda — Os Ladrões de Som — gravam uma maqueta em fita, tentam entrar nas rádios livres, e enfrentam os dilemas típicos de uma geração que vivia entre o idealismo artístico e as limitações técnicas.
Há tensão, há amores que nascem entre riffs de guitarra, há desilusões nos bastidores. Mas há também esperança. A BD recria o ambiente suado dos concertos, o cheiro a cerveja, o som rouco dos amplificadores, o público a saltar — e o país a descobrir-se através da música.
Os Anos 80: Quando Portugal Aprendeu a Dançar
“Os anos 80 foram o ponto de viragem”, explica o editor João Ribeiro. “Depois do fado e da revolução, veio o som urbano, elétrico, sintetizado. Era o país a ligar-se à Europa, às televisões, às modas — mas com alma portuguesa.”
A banda desenhada mergulha fundo nessa atmosfera. Cada capítulo tem um tema musical: “Cidade Elétrica”, “Feedback”, “Corações em Estéreo”, “Último Concerto”.
O leitor é convidado a percorrer uma década inteira — das festas punk em Cacilhas às transmissões improvisadas das rádios livres; das primeiras editoras independentes aos festivais ao ar livre que marcariam o início de uma nova era.
O som da guitarra é o fio condutor — símbolo da juventude, da rebeldia e da transformação cultural.
A Estética Visual: Cores e Energia
O ilustrador Tiago Alves, que assume a arte desta segunda edição, descreve o desafio como “um concerto desenhado”.
“Nos anos 80 tudo era intenso — as cores, as roupas, a música, até o ruído. Quisemos que o leitor sentisse isso em cada página”, explica.
A arte é marcada por contrastes fortes: luzes néon, sombras densas, linhas dinâmicas. Há cartazes de concertos colados nas paredes, fitas de cassete, rádios portáteis, posters de bandas estrangeiras, graffiti político.
“Enquanto o Fado Urbano tinha uma paleta melancólica, azulada, Som Eléctrico é vermelho, laranja, verde fluorescente. É pulsação pura.”
O resultado é uma narrativa visual que parece vibrar no papel — quase se ouve a distorção da guitarra ao virar de cada página.
Realismo e Ficção Misturados
Embora Rita Fonseca seja uma personagem inventada, muitos episódios refletem histórias reais da época.
Há alusões à primeira edição do Rock Rendez Vous, à explosão do boom do rock português, e até à efervescência cultural das rádios pirata e das editoras independentes.
“Não queríamos fazer um documentário — queríamos capturar o espírito do tempo”, diz Mário Duarte. “A Rita é uma síntese da coragem e da inocência daquela geração. É o som de um país que queria falar alto, depois de tantos anos a sussurrar.”
O Som Eléctrico Como Metáfora
O título Som Eléctrico tem múltiplos sentidos. Representa a energia da música, mas também o choque de identidade que Portugal viveu nos anos 80: entre o passado rural e o futuro urbano, entre o analógico e o digital, entre o conservadorismo e a liberdade criativa.
Nas páginas finais, Rita reflete:
“A eletricidade é o sangue novo. Se desligarmos o som, o país apaga-se outra vez.”
Essa frase tornou-se o lema promocional do projeto, e ecoa como um grito de afirmação artística.
Da Banda Desenhada à Música Real
Assim como na primeira edição, Som Eléctrico é um projeto multimédia. Há uma trilha sonora original criada por músicos portugueses inspirados nos anos 80 — um conjunto de temas que recriam o som da época, com guitarras vintage, sintetizadores analógicos e vocais carregados de eco.
O álbum, lançado em simultâneo, chama-se Feedback Nacional e inclui participações de artistas contemporâneos que reinterpretam o espírito dessa década.
“O objetivo é que o leitor possa ler a banda desenhada e ouvir a música ao mesmo tempo”, explica João Ribeiro. “É uma experiência total — como se estivesses num concerto em papel.”
Uma Geração Retratada em Vinhetas
Ao longo da história, encontramos personagens secundárias que representam diferentes faces da cena musical da época:
Pedro “Punk” Almeida, vocalista anarquista apaixonado pela poesia.
Helena Duarte, radialista que arrisca transmitir música proibida.
Miguel Moura, produtor que tenta gravar o som português sem ceder às modas estrangeiras.
Cada um deles acrescenta uma camada à narrativa — mostrando como a música era também resistência, comunidade e descoberta pessoal.
Lisboa Como Personagem
Tal como em Fado Urbano, Lisboa volta a ser cenário e personagem. Mas agora é uma cidade em ebulição — grafitada, caótica, barulhenta.
O Cais do Sodré mistura marinheiros e punks. O Bairro Alto é um laboratório criativo. O Rock Rendez Vous, retratado com detalhe, é o epicentro da juventude urbana.
“O desenho da cidade é quase documental”, diz Tiago Alves. “Pesquisei fotos, cartazes, anúncios da época. Quisemos recriar Lisboa com autenticidade — as lojas de discos, os elétricos, os cafés com jukebox, os muros cheios de slogans.”
É uma Lisboa que vibra ao som das guitarras — uma Lisboa que nunca dorme.
O Legado dos Oitenta
Mais do que nostalgia, Som Eléctrico é uma reflexão sobre herança. O projeto procura mostrar que os anos 80 foram fundamentais para a consolidação da música portuguesa moderna.
Sem essa década de experimentação e ousadia, dificilmente teríamos a diversidade que hoje caracteriza a cena nacional.
“O rock português dos 80 foi o nosso grito adolescente”, afirma João Ribeiro. “Mostrou que podíamos ter uma identidade musical sem imitar ninguém.”
A BD celebra isso — com irreverência, emoção e ritmo.
Uma Heroína Fora do Tempo
No final, Rita Fonseca sobe ao palco de um festival improvisado nos arredores de Lisboa. A eletricidade falha, o som cai, mas ela continua a cantar, a capella, diante de centenas de jovens que acendem isqueiros no ar.
“Mesmo sem amplificador, o som é meu.”
A última vinheta mostra-a de olhos fechados, banhada por luz branca, enquanto a cidade desperta ao longe.
O “som elétrico” já não é apenas música — é liberdade.
Conclusão: Quando o Passado Inspira o Futuro
Com esta segunda edição, o musicaTotal.net confirma a força do seu projeto editorial: unir arte, memória e inovação.
Som Eléctrico não é apenas uma homenagem aos anos 80 — é uma ponte entre gerações. Um lembrete de que cada época tem o seu som, o seu pulso, a sua revolução.
Rita Fonseca, tal como Mariana Luz antes dela, representa o espírito criativo português em constante reinvenção. O fado urbano do presente e o som elétrico do passado coexistem — ambos nascidos do mesmo desejo: dar voz a um país que sente, cria e transforma-se através da música.
Liga-te à música, vive a cultura.


















